Furto qualificado praticado por filhos em detrimento do patrimônio familiar
Atualmente a subtração praticada entre pais e filhos não é tipificada. Este artigo visa a projetar a prática deste fato como sendo ilícito.
A lei penal brasileira demonstrou, ao longo de sua existência, desde o Código Criminal, uma significativa evolução diante dos casos que diuturnamente acontecem na sociedade – não há que se olvidar. No entanto, para que algumas condutas fossem necessariamente tipificadas, muito ainda foi preciso altercar para que se almejasse a correta e justa aplicação do direito. Uma das evoluções permitidas pelo legislador foi a retirada, do Código Penal, da figura do Rapto, substituindo-a por Sequestro com fins libidinosos. Da mesma forma, como foi extirpado o adultério do ordenamento penal, frente ao insucesso de sua aplicação e à visível dissonância da conduta com a evolução dos relacionamentos interpessoais, várias outras condutas são aquilatadas para melhor se avaliar o impacto de sua projeção e influência no meio social.
A lei penal ainda não alcançou patamares satisfatórios em vários setores desprotegidos, apenas abrangidos pela lei civil. É sabido, contudo, que a lei penal deve ser utilizada ultima ratio, até mesmo porque as mais diversificadas situações que lesam bens jurídicos podem até mesmo não estar tipificadas na legislação penal. Este é o caso da subtração de bens realizada pelos filhos em detrimento do patrimônio familiar. É notório que o furto, subtração de coisa alheia móvel, não abrange a subtração de patrimônio dos pais, se são os filhos que o subtraem. Dentre as diversas justificativas para a não-tipificação desta conduta lesiva é a de que o patrimônio dos pais pertenceria, necessariamente, aos filhos; no entanto, esta justificativa torna-se de todo improcedente, frente à própria legislação civil. De acordo com o Código Civil, os bens dos pais pertencerão aos filhos quando da falta dos genitores, ressalvando-se, contudo, a prodigalidade e demais fatores que possam diluir o patrimônio familiar e na distribuição irregular entre a prole.
A sociedade urge por providências mais incisivas de seus legisladores, sugerindo mudanças em sua geométrica progressão social, enquanto a própria lei caminha em progressão aritmética, a passos lentos. Não se recusa este texto a enaltecer, evidentemente, as diversas ocasiões em que a lei alcançou, com mérito, tantas adversidades dantes legalmente imprevistas. No entanto, mesmo diante da efetiva impossibilidade de se prever todo e qualquer ato humano, lesivo a bens juridicamente relevantes, é válido estranhar que uma modalidade tão vil quanto o furto entre ascendentes e descendentes ainda não comporte previsão legal, mesmo diante de casos tão graves, que frequentemente ocorrem neste país.
Talvez seja quase desnecessário dizer que quando o Código Penal foi criado, início da década de 40, o comportamento social era bastante diverso em comparação ao que hoje se averigua. Os valores mudaram, bem como o acesso das pessoas aos bens, as facilidades de comunicação, a gravidade com que os crimes hoje são cometidos e a repercussão que as atitudes criminógenas refletem no ser humano e no meio em que se vive. Se antigamente a usurpação da vida ocorria por homicídio simples ou, no máximo, com uma causa de aumento ou uma qualificadora, hoje o criminoso arrasta criança presa em cinto de segurança de veículo e bate seu corpinho contra o meio fio, no intuito de se livrar do impedimento à consecução do seu fim; se antes os veículos eram furtados durante a madrugada, hoje os proprietários são lançados do alto de um morro; se antes alguns pais batiam nas crianças, usando suas mãos, seus cintos como instrumentos de correição, hoje a indevida lição é aplicada, lançando-se uma inocente impúbere da janela de um apartamento, condenando-a a uma pena capital simplesmente por existir.
O Código Penal insere, em seu artigo 181, causas de inimputabilidade que não se coadunam com a realidade que a sociedade hoje enfrenta. Diz a lei:
Art. 181 – É isento de pena quem comete qualquer dos crimes previstos neste título, em prejuízo:
I – do cônjuge, na constância da sociedade conjugal; II – de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural. |
Atualmente, o número de jovens em contato com substâncias entorpecentes e drogas de qualquer gênero é praticamente impossível de se contabilizar, até mesmo porque o ramo que envolve a negociação de drogas abrange um número indiscriminado de vítimas a cada dia. No afã de obter meios de sustentar a necessidade que a droga causa em seu organismo, os jovens tendem a praticar pequenas subtrações, de dinheiro e de outros bens, senão as subtrações de grande vulto, para fins de alienação, como a venda de aparelhos domésticos, de utensílios do lar, de jóias, do veículo dos pais e, porque não, da própria casa. Quando o Código Penal deveria coibir o furto qualificado pelo abuso de confiança, ao contrário, ele retira dos filhos a responsabilidade de prezar pelos bens que os pais constituíram, muitas vezes, com o sacrifício de uma vida inteira. Com relação ao imóvel, a lei civil prevê e deslegitima a venda não autorizada e não mais silencia diante dela, como antes se considerava (pelo velho dizer de que “quem paga mal, paga duas vezes”). Atualmente o Código Civil encontra-se em maior concordância com os acontecimentos da sociedade, inclusive com os fatos tipificados, evitando, desta forma, as tão conhecidas maneiras de engrupir os pais.
É necessário que a lei penal preveja esta modalidade de subtração de bens de filho para pai, para que não se permita a dilapidação patrimonial e a destruição de uma família às custas do uso de drogas. O parentesco ilegítimo a que se refere a lei, trata do parentesco plenamente legitimado do padrasto e da madrasta, que também não podem alegar furto de seus bens pelos filhos de seu cônjuge. Se o parentesco torna-se legitimado, não há que se alegar furto de coisa qualquer contra enteado(a). Tal conduta, no entanto, é muito comum nas famílias que hoje se encontram desestruturadas, seja por vícios adquiridos pelos jovens, seja pela própria instabilidade emocional que hoje acomete tantas pessoas, geralmente desempregadas, independentemente de sua instrução.
Já a usurpação de bens de cônjuge para cônjuge, esta encontra seu lastro no mesmo artigo supra citado. Infelizmente, a existência de uma lei que retira do autor a capacidade de ser punido retrata um menoscabo à realidade que o próprio Código Civil procurou sanar. Se hoje há um grande respeito em consideração à escolha de regimes dos casais (tendo acatado o Código Civil, inclusive, o seu direito à mudança), a própria lei civil encontrar-se-ia em desacordo em seus artigos.
Cite-se a referida lei:
Art. 977. Faculta-se aos cônjuges contratar sociedade, entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória.
Art. 978. O empresário casado pode, sem necessidade de outorga conjugal, qualquer que seja o regime de bens, alienar os imóveis que integrem o patrimônio da empresa ou gravá-los de ônus real. |
Se, por um lado, o cônjuge pode contratar, entre si ou com pessoas alheias à sociedade conjugal, mas para isso deve respeitar o regime escolhido no momento do matrimônio, esta espécie ocorre, evidentemente, no objetivo de preservar os bens de ambos, que para que um dos contratantes, sendo o cônjuge ou o terceiro, não interfira prejudicialmente na parte do patrimônio que caiba a qualquer dos casados. O Código Civil procurou, desta forma, proteger o patrimônio familiar da melhor forma possível. No entanto, no artigo seguinte, procurou o legislador permitir a alienação indiscriminada e incondicional do patrimônio imobiliário da empresa do casal por qualquer dos cônjuges, o que não surtiu qualquer compreensão, quando da aplicação da lei em seu todo.
No caso de usurpação patrimonial entre cônjuges, há de se realizar uma breve anotação. De fato, pode tratar-se de furto, quando o bem de um não integre o patrimônio do outro e, a depender da influência do parceiro sobre o bem do outro, poder-se-ia cogitar, ao menos, apropriação indébita. Neste caso, o regime há que ser considerado para aferição de um provável tipo penal, quando da sua tipificação futura. Por outro lado, se os bens do casal integram patrimônio conjunto, não há que se falar em furto ou apropriação indébita, porque ambos são proprietários.
Ao não permitir que a lei puna a subtração de bens entre cônjuges, ascendentes e descendentes, a lei pode, a depender do caso em questão, agraciar de impunibilidade situações de extremo agravo à sociedade. O Direito Penal deve ser instrumento de pacificação, de mitigação das discórdias, de limitação da atuação em sociedade. Quando se encontra silente, é permissivo nas condutas de maior vexame social; quando aplicado, rende-se à inteligência de seu aplicador. Porquanto baste saber a origem de sua incidência, na realidade, o que realmente importa, é saber a capacidade de sua abrangência, a importância de seu estatuto e, principalmente, o berço de suas proposições. Desta forma, pode-se aferir se haverá ou não justiça no uso dos seus preceitos e se o Direito Penal é utilizado, conforme prelecionam tantos juristas, como ultima ratio, efetivamente, mas como meio etéreo de segurança social, como nunca poderia deixar de ser.
Parabéns, muito útil e esclarecedor. Que os legisladores possam corrigir esta absurda condição nos tempos atuais, principalmente frente às drogas.
Otimo texto. Me add no face por favor. Um abs